Presságios
Quando o copo cai
um caco dispara,
e um papel escorrega,
e algo mexe ou se move,
e algo se parte em sua estrutura ––
é preciso ficar sempre de guarda.
Agora escrevo e paro
para pensar
quantas folhas de papel entalaram na minha garganta.
Eu, se assim posso dizer, não sou mais eu.
Estou partida, definhando rápido.
Um tremor no ar. Falta um padrão.
Talvez seja eu que caia depressa.
E eu me recuso a acreditar.
Simplesmente me recuso a ver.
para Itzchak Livni
Nove palavras eu lhe disse.
Você disse isso e aquilo.
Você disse: Você tem um filho,
Tem tempo, tem poesia.
As barras nas janelas ficaram gravadas em minha pele;
não dá para acreditar que aguentei tudo isso.
Eu não precisava, mesmo,
humanamente falando.
No dia Dez de Tevet o cerco começou;
no dia Dezessete de Tâmuz a cidade caiu;
no Nono de Ab o templo foi destruído.
Eu suportei tudo isso sozinha.
Dahlia
Ravikovitch (דליה רביקוביץ) foi uma poeta israelense, nascida em 1936
num subúrbio de Tel Aviv, na época Mandato Britânico da Palestina. Foi
contemporânea de outros grandes nomes da poesia em hebraico moderno,
como Yehuda Amichai (1924-2000), Natan Zach (1930-) e David Avidan
(1934-1995) e, segundo Tsipi Keller, uma das formadoras da poesia
israelense contemporânea. Sua vida pessoal foi tempestuosa, com a morte
precoce do pai, quando ela tinha 6 anos, e um período curto que passou
num kibbutz, ao qual não conseguiu se adaptar, por conta da
sufocante mentalidade coletivista do local. Passou por três casamentos,
alguns surtos de depressão e tentativas de suicídio, além de respostas
muito negativas à sua poesia política por parte dos conservadores. Foi
jornalista, formada pela Universidade Hebraica de Jerusalém, ativista
pela paz e pelos direitos dos palestinos, publicou doze volumes de
poesia, três coletâneas de contos e vários livros infantis, além de
traduções, para o hebraico, de autores como Yeats, Poe e T. S. Eliot, e
morreu em agosto de 2005.
Como me aconteceu com Someck, de meu post anterior, meu contato com a poesia de Dahlia Ravikovitch se deu com a seleção e tradução inglesa da estudiosa Tsipi Keller, no volume Poets on the Edge. No entanto, ao contrário de Someck, não consegui encontrar ainda nenhum volume de seus poemas traduzidos para o português diretamente do hebraico. Então, aproveitando o meu entusiasmo pela poesia israelense moderna, decidi mais uma vez tentar a empreitada da tradução indireta. Desta vez, no entanto, minhas fontes são duas: uma é, novamente, Tsipi Keller, a outra é a dupla de tradutoras Chana Bloch e Chana Kronfeld, responsáveis pelo volume de traduções de Ravikovitch Hovering at a Low Altitude (Nova York: W.W. Norton, 2009), o que nos fornece uma variedade um pouco maior, já que a seleção das Chanas (nota: o ch é pronunciado como um quase r, meio gutural) busca os poemas ao longo de quase toda a carreira de Dahlia, ao que pude ver, enquanto Keller se foca num livro apenas (אמא עם ילד , ou Mãe com Criança, de 1992).
Talvez eu devesse arriscar algum comentário mais detido sobre sua poesia, mas creio que seria melhor um estudo, de minha parte, um pouco mais profundo a respeito, a fim de evitar o comentário ingênuo ou redundante. Se eu tivesse algo a dizer agora sobre o que mais me atraiu nos versos de Ravikovitch seria a sua capacidade de criar impacto, de revestir frases diretas e simples, como o “Eu suportei tudo isso sozinho” ou “Eu não estou aqui”, de uma tremenda força emocional. Esse peso parece ser ainda maior nos poemas políticos, onde esses versos surgem sob um pano de fundo profundamente irônico, como é o caso de “Planando em baixa altitude”, poema que dá título ao volume de traduções de Bloch & Kronfeld. Nele, segundo Kronfeld, o “Eu não estou aqui” seria uma referência ao afastamento moral de Tel Aviv, amarrando a pequena e horrenda fábula narrada com a realidade política israelense. Nem toda sua poesia é claramente política, mas essa guinada é visível a partir de 1982, data da invasão do Líbano por Israel. Há poemas, como “Orgulho” (reproduzido e retraduzido abaixo), datado de 1970, que tratam de assuntos mais intimistas, uma outra faceta de Ravikovitch que gostaria igualmente de apresentar. Como é provavelmente inevitável, talvez até para o próprio pensamento em hebraico, há uma abundância de referências da tradição judaica, como, nos poemas que selecionei, ao dia da destruição do Templo de Salomão no Cerco de Jerusalém em 9 do mês de Ab, em “Uma História Privada”, e ao Salmo 121:1, em “Planando”. Pode ser só um chute, mas imagino que não se trate de referências puramente eruditas, por assim dizer, mas de referências comuns da cultura judaica.
Por fim, apresento, então, 3 poemas vertidos a partir da tradução de Tsipi Keller e 4 poemas vertidos a partir da tradução de Chana Bloch & Chana Kronfeld.
Adriano Scandolara
Uma História Privada
para Itzchak Livni
Nove palavras eu lhe disse.
Você disse isso e aquilo.
Você disse: Você tem um filho,
Tem tempo, tem poesia.
As barras nas janelas ficaram gravadas em minha pele;
não dá para acreditar que aguentei tudo isso.
Eu não precisava, mesmo,
humanamente falando.
No dia Dez de Tevet o cerco começou;
no dia Dezessete de Tâmuz a cidade caiu;
no Nono de Ab o templo foi destruído.
Eu suportei tudo isso sozinha.
A Vida de um Besouro
Um besouro preto segue o seu caminho devagar.
Você o observa e diz: Como é feio.
Um corpo corcunda, olhos incansáveis,
ele chegou aqui do Paquistão
sem motivos ocultos.
Dê crédito ao besouro preto.
Ele veio para cá trabalhar, aspirar
a um futuro breve e brilhante –
a mais alta alegria do besouro.
Não lhe faça mal,
ele suplica por misericórida
e segue a rastejar.
No fundo de seu coração besta
todo besouro sabe
que você não o poupará,
que você não dará ouvidos.
A História do Árabe que Morreu no Incêndio
Quando o fogo pegou seu corpo, não foi gradualmente
Não houve um primeiro estouro de calor,
nem rajada da fumaça que sufoca,
ou uma noção de algum lugar próximo
para onde fugir.
A chama o pegou instantaneamente –
isso não tem símile –
tirou suas roupas,
chamuscou-lhe a carne.
Os nervos epidérmicos foram atingidos primeiro,
o cabelo alimentou a chama,
Meu Deus, ele gritou, queima,
e foi só isso que pôde fazer em autodefesa.
A carne já queimava com as tábuas do barraco,
que alimentaram a chama no primeiro estágio.
Ele não mais possuía compreensão;
a chama alimentada na carne
amortecia a noção do futuro.
Ele não tinha mais vínculo com sua infância.
E gritava sem quaisquer freios mentais
e perdeu toda a relação com os familiares;
não rogava por vingança, salvação,
não rogava para ver a manhã do dia seguinte.
Desejava só parar de queimar,
mas o próprio corpo mantinha o fogo.
Era como se estivesse preso e amarrado –
mas não pensava nisso também.
E continuou a queimar com o vigor de seu corpo
feito de carne, medula e nervos.
E queimou por muito tempo.
E sons desumanos emanaram de sua garganta,
pois várias funções humanas já haviam parado de funcionar,
exceto pela dor que os nervos conduzem em correntes elétricas ao centro de dor no cérebro.
E não durou mais do que um dia.
E felizmente seu espírito rendeu-se aquele dia,
ele merecia descanso.
(traduções de Adriano Scandolara, via Tsipi Keller)
No ano por vir, nos dias por vir
No ano por vir, nos dias por vir
Minha mãe repousa na cama, tentando morrer.
Oito anos se passaram, as manhãs
iguais às tardes
e todas as horas segundos minutos entre elas
esquálidos e vazios.
Minha mãe não dava as horas
às flores e toda aquela baboseira que florescia
a beleza da natureza, os temporais.
Oito anos e nem um único momento a fez
mais sábia, não a fez erguer-se em pé
nem restaurou sua força de vontade,
a Alegria do Trabalho, o poder de lembrar-se
de algo tão vital ao seu ser
quanto os Preceitos Éticos do Judaísmo.
Minha mãe repousa na cama, tentando morrer.
De repente, ela se ergue como uma leoa
em protesto, e diz sem falar: Já me basta
Viver já deu o que tinha que dar
nos dias por vir
no ano por vir
todas as gloriosas flores da Galileia terão de crescer
sem mim.
Montes de sal
A espuma do mar pairava como asas de um pássaro
e dois montes de sal restavam na praia,
e todo o mar era lago sobre lago
com os barcos à vela pequenos como um polegar,
suas cores como bolhas de sabão.
E nós dois sentados, cada um no seu lago,
duas faixas de praia entre nós
e uma fortuna de algas marinhas.
E as frondes pesadas das algas balançavam para frente e para trás,
se enroscando nos dentes dos corais num suspiro de desenfreada luxúria.
Uma massa de algas marinhas se soltou e caiu aos meus pés,
e minhas pálpebras pesavam de luz.
E o mar se ergueu e transbordou de poça em poça,
e através de seus riachos azuis havia um tecido de esplendor.
Lagos se enchiam nas palmas de nossas mãos,
e faixas de praia entre nós – duas braças de comprimento.
E durante aquele dia inteiro jamais nos aproximamos, nem um fio de cabelo,
os corpos como dois montes de sal, os pés como alga marinha.
Orgulho
Até as rochas se partem, eu te digo,
e não é pela idade.
Tantos anos deitadas de costas no calor e no frio,
tantos anos
que quase se cria a ilusão de tranquilidade.
Não se movem, escondendo as rachaduras.
Uma forma de orgulho.
Os anos as passam enquanto aguardam.
Quem quer que venha arrebentá-las
ainda não veio.
E assim floresce o musgo, a alga
chicoteia,
o mar rebenta e volta –
e ainda parecem imóveis.
Até que uma foca venha se esfregar contra as rochas, venha e vá.
E de repente na rocha surge uma ferida aberta.
Eu te disse, é uma surpresa quando as rochas se partem.
As pessoas, mais ainda.
Planando em baixa altitude
Não estou aqui.
Estou lá naqueles montes rochosos do leste
riscados de gelo
onde a relva não cresce
e uma vasta sombra varre os barrancos.
Uma pastorinha
com um rebanho de bodes,
bodes pretos,
emerge de súbito
de uma tenda não vista.
Ela não sobreviverá a esse dia, a menina,
no pasto.
Não estou aqui.
Dentro da boca arreganhada da montanha
um globo vermelho irradia,
não bem sol ainda.
Uma lesão de geada, corada e doente,
revolve nessa garganta.
E a pequenina se levantou tão cedo
para ir ao pasto.
Ela não pinta os olhos com kajal.
Ela não pergunta, De onde me vem o socorro?
Não estou aqui.
Estou pelas montanhas há vários dias já.
A luz não me há de escorchar. A geada não me há de tocar.
Nada mais me poderá deslumbrar.
Vi coisas piores na vida.
Aperto o vestido preso nas pernas e plano
muito próxima do chão.
O que será que pensava a menina?
Bárbara de se olhar, mal lavada.
Por um momento ela se agacha.
As faces de seda macia,
marcas de congelamento nas costas da mão.
Parece distraída, mas não é,
na verdade, está alerta.
Ainda muitas horas lhe restam.
Mas isso sequer é assunto das minhas meditações.
Meus pensamentos, macios como plumas, me acomodam com conforto.
Descobri um método simplíssimo,
não estou a sequer um palmo na terra
e também não voo –
planando em baixa altitude.
Mas enquanto o dia caminha até a metade,
muitas horas
após a alvorada,
o homem sobe até a montanha.
Ele parece bastante inocente
A menina está bem lá, perto dele,
sequer uma vivalma por perto.
E se ela procurar cobertura, ou gritar –
não há onde se esconder nas montanhas.
Não estou aqui.
Estou acima dessas cordilheiras selvagens
nos pontos mais longínquos do leste.
Não é necessário elaborar.
Com um só arremesso se plana
e rodopia por aí veloz como o vento.
Posso pôr-me em fuga e me persuadir:
Não vi coisa alguma.
E a pequenina, os olhos se arregalam nas órbitas,
o céu da boca seco como um caco de vaso
quando uma mão áspera lhe prende o cabelo e a agarra
sem a menor pena.
(traduções de Adriano Scandolara, via Chana Bloch e Chana Kronfeld)
Como me aconteceu com Someck, de meu post anterior, meu contato com a poesia de Dahlia Ravikovitch se deu com a seleção e tradução inglesa da estudiosa Tsipi Keller, no volume Poets on the Edge. No entanto, ao contrário de Someck, não consegui encontrar ainda nenhum volume de seus poemas traduzidos para o português diretamente do hebraico. Então, aproveitando o meu entusiasmo pela poesia israelense moderna, decidi mais uma vez tentar a empreitada da tradução indireta. Desta vez, no entanto, minhas fontes são duas: uma é, novamente, Tsipi Keller, a outra é a dupla de tradutoras Chana Bloch e Chana Kronfeld, responsáveis pelo volume de traduções de Ravikovitch Hovering at a Low Altitude (Nova York: W.W. Norton, 2009), o que nos fornece uma variedade um pouco maior, já que a seleção das Chanas (nota: o ch é pronunciado como um quase r, meio gutural) busca os poemas ao longo de quase toda a carreira de Dahlia, ao que pude ver, enquanto Keller se foca num livro apenas (אמא עם ילד , ou Mãe com Criança, de 1992).
Talvez eu devesse arriscar algum comentário mais detido sobre sua poesia, mas creio que seria melhor um estudo, de minha parte, um pouco mais profundo a respeito, a fim de evitar o comentário ingênuo ou redundante. Se eu tivesse algo a dizer agora sobre o que mais me atraiu nos versos de Ravikovitch seria a sua capacidade de criar impacto, de revestir frases diretas e simples, como o “Eu suportei tudo isso sozinho” ou “Eu não estou aqui”, de uma tremenda força emocional. Esse peso parece ser ainda maior nos poemas políticos, onde esses versos surgem sob um pano de fundo profundamente irônico, como é o caso de “Planando em baixa altitude”, poema que dá título ao volume de traduções de Bloch & Kronfeld. Nele, segundo Kronfeld, o “Eu não estou aqui” seria uma referência ao afastamento moral de Tel Aviv, amarrando a pequena e horrenda fábula narrada com a realidade política israelense. Nem toda sua poesia é claramente política, mas essa guinada é visível a partir de 1982, data da invasão do Líbano por Israel. Há poemas, como “Orgulho” (reproduzido e retraduzido abaixo), datado de 1970, que tratam de assuntos mais intimistas, uma outra faceta de Ravikovitch que gostaria igualmente de apresentar. Como é provavelmente inevitável, talvez até para o próprio pensamento em hebraico, há uma abundância de referências da tradição judaica, como, nos poemas que selecionei, ao dia da destruição do Templo de Salomão no Cerco de Jerusalém em 9 do mês de Ab, em “Uma História Privada”, e ao Salmo 121:1, em “Planando”. Pode ser só um chute, mas imagino que não se trate de referências puramente eruditas, por assim dizer, mas de referências comuns da cultura judaica.
Por fim, apresento, então, 3 poemas vertidos a partir da tradução de Tsipi Keller e 4 poemas vertidos a partir da tradução de Chana Bloch & Chana Kronfeld.
Adriano Scandolara
Uma História Privada
para Itzchak Livni
Nove palavras eu lhe disse.
Você disse isso e aquilo.
Você disse: Você tem um filho,
Tem tempo, tem poesia.
As barras nas janelas ficaram gravadas em minha pele;
não dá para acreditar que aguentei tudo isso.
Eu não precisava, mesmo,
humanamente falando.
No dia Dez de Tevet o cerco começou;
no dia Dezessete de Tâmuz a cidade caiu;
no Nono de Ab o templo foi destruído.
Eu suportei tudo isso sozinha.
A Vida de um Besouro
Um besouro preto segue o seu caminho devagar.
Você o observa e diz: Como é feio.
Um corpo corcunda, olhos incansáveis,
ele chegou aqui do Paquistão
sem motivos ocultos.
Dê crédito ao besouro preto.
Ele veio para cá trabalhar, aspirar
a um futuro breve e brilhante –
a mais alta alegria do besouro.
Não lhe faça mal,
ele suplica por misericórida
e segue a rastejar.
No fundo de seu coração besta
todo besouro sabe
que você não o poupará,
que você não dará ouvidos.
A História do Árabe que Morreu no Incêndio
Quando o fogo pegou seu corpo, não foi gradualmente
Não houve um primeiro estouro de calor,
nem rajada da fumaça que sufoca,
ou uma noção de algum lugar próximo
para onde fugir.
A chama o pegou instantaneamente –
isso não tem símile –
tirou suas roupas,
chamuscou-lhe a carne.
Os nervos epidérmicos foram atingidos primeiro,
o cabelo alimentou a chama,
Meu Deus, ele gritou, queima,
e foi só isso que pôde fazer em autodefesa.
A carne já queimava com as tábuas do barraco,
que alimentaram a chama no primeiro estágio.
Ele não mais possuía compreensão;
a chama alimentada na carne
amortecia a noção do futuro.
Ele não tinha mais vínculo com sua infância.
E gritava sem quaisquer freios mentais
e perdeu toda a relação com os familiares;
não rogava por vingança, salvação,
não rogava para ver a manhã do dia seguinte.
Desejava só parar de queimar,
mas o próprio corpo mantinha o fogo.
Era como se estivesse preso e amarrado –
mas não pensava nisso também.
E continuou a queimar com o vigor de seu corpo
feito de carne, medula e nervos.
E queimou por muito tempo.
E sons desumanos emanaram de sua garganta,
pois várias funções humanas já haviam parado de funcionar,
exceto pela dor que os nervos conduzem em correntes elétricas ao centro de dor no cérebro.
E não durou mais do que um dia.
E felizmente seu espírito rendeu-se aquele dia,
ele merecia descanso.
(traduções de Adriano Scandolara, via Tsipi Keller)
No ano por vir, nos dias por vir
No ano por vir, nos dias por vir
Minha mãe repousa na cama, tentando morrer.
Oito anos se passaram, as manhãs
iguais às tardes
e todas as horas segundos minutos entre elas
esquálidos e vazios.
Minha mãe não dava as horas
às flores e toda aquela baboseira que florescia
a beleza da natureza, os temporais.
Oito anos e nem um único momento a fez
mais sábia, não a fez erguer-se em pé
nem restaurou sua força de vontade,
a Alegria do Trabalho, o poder de lembrar-se
de algo tão vital ao seu ser
quanto os Preceitos Éticos do Judaísmo.
Minha mãe repousa na cama, tentando morrer.
De repente, ela se ergue como uma leoa
em protesto, e diz sem falar: Já me basta
Viver já deu o que tinha que dar
nos dias por vir
no ano por vir
todas as gloriosas flores da Galileia terão de crescer
sem mim.
Montes de sal
A espuma do mar pairava como asas de um pássaro
e dois montes de sal restavam na praia,
e todo o mar era lago sobre lago
com os barcos à vela pequenos como um polegar,
suas cores como bolhas de sabão.
E nós dois sentados, cada um no seu lago,
duas faixas de praia entre nós
e uma fortuna de algas marinhas.
E as frondes pesadas das algas balançavam para frente e para trás,
se enroscando nos dentes dos corais num suspiro de desenfreada luxúria.
Uma massa de algas marinhas se soltou e caiu aos meus pés,
e minhas pálpebras pesavam de luz.
E o mar se ergueu e transbordou de poça em poça,
e através de seus riachos azuis havia um tecido de esplendor.
Lagos se enchiam nas palmas de nossas mãos,
e faixas de praia entre nós – duas braças de comprimento.
E durante aquele dia inteiro jamais nos aproximamos, nem um fio de cabelo,
os corpos como dois montes de sal, os pés como alga marinha.
Orgulho
Até as rochas se partem, eu te digo,
e não é pela idade.
Tantos anos deitadas de costas no calor e no frio,
tantos anos
que quase se cria a ilusão de tranquilidade.
Não se movem, escondendo as rachaduras.
Uma forma de orgulho.
Os anos as passam enquanto aguardam.
Quem quer que venha arrebentá-las
ainda não veio.
E assim floresce o musgo, a alga
chicoteia,
o mar rebenta e volta –
e ainda parecem imóveis.
Até que uma foca venha se esfregar contra as rochas, venha e vá.
E de repente na rocha surge uma ferida aberta.
Eu te disse, é uma surpresa quando as rochas se partem.
As pessoas, mais ainda.
Planando em baixa altitude
Não estou aqui.
Estou lá naqueles montes rochosos do leste
riscados de gelo
onde a relva não cresce
e uma vasta sombra varre os barrancos.
Uma pastorinha
com um rebanho de bodes,
bodes pretos,
emerge de súbito
de uma tenda não vista.
Ela não sobreviverá a esse dia, a menina,
no pasto.
Não estou aqui.
Dentro da boca arreganhada da montanha
um globo vermelho irradia,
não bem sol ainda.
Uma lesão de geada, corada e doente,
revolve nessa garganta.
E a pequenina se levantou tão cedo
para ir ao pasto.
Ela não pinta os olhos com kajal.
Ela não pergunta, De onde me vem o socorro?
Não estou aqui.
Estou pelas montanhas há vários dias já.
A luz não me há de escorchar. A geada não me há de tocar.
Nada mais me poderá deslumbrar.
Vi coisas piores na vida.
Aperto o vestido preso nas pernas e plano
muito próxima do chão.
O que será que pensava a menina?
Bárbara de se olhar, mal lavada.
Por um momento ela se agacha.
As faces de seda macia,
marcas de congelamento nas costas da mão.
Parece distraída, mas não é,
na verdade, está alerta.
Ainda muitas horas lhe restam.
Mas isso sequer é assunto das minhas meditações.
Meus pensamentos, macios como plumas, me acomodam com conforto.
Descobri um método simplíssimo,
não estou a sequer um palmo na terra
e também não voo –
planando em baixa altitude.
Mas enquanto o dia caminha até a metade,
muitas horas
após a alvorada,
o homem sobe até a montanha.
Ele parece bastante inocente
A menina está bem lá, perto dele,
sequer uma vivalma por perto.
E se ela procurar cobertura, ou gritar –
não há onde se esconder nas montanhas.
Não estou aqui.
Estou acima dessas cordilheiras selvagens
nos pontos mais longínquos do leste.
Não é necessário elaborar.
Com um só arremesso se plana
e rodopia por aí veloz como o vento.
Posso pôr-me em fuga e me persuadir:
Não vi coisa alguma.
E a pequenina, os olhos se arregalam nas órbitas,
o céu da boca seco como um caco de vaso
quando uma mão áspera lhe prende o cabelo e a agarra
sem a menor pena.
(traduções de Adriano Scandolara, via Chana Bloch e Chana Kronfeld)
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